Onde estava Colin Powell em 11 de setembro de 2001?
Andrea G
El Estadão / Moisés Naím e tradução de Augusto Calil
Colin Powell, o então Secretário de Estado americano, havia aceitado o convite do presidente peruano, Alejandro Toledo, para um café da manhã no Palácio do Governo. Mas o alto funcionário dos Estados Unidos não viajou a Lima para falar com Toledo. Seu propósito era representar seu país no que prometia ser um encontro histórico: em 11 de setembro de 2001, 34 países das Américas se comprometeriam a fortalecer e defender a democracia.
No documento a ser assinado, a Carta Democrática Interamericana, os governos reconheceram que “os povos das Américas têm direito à democracia e seus governos têm a obrigação de promovê-la e defendê-la”.
Eram tempos em que a democracia estava voando alto: em uma ampla gama de países, as pesquisas de opinião da época revelavam que ela era largamente considerada o melhor sistema político. Era o sistema mantido pelos países que enfrentaram e derrotaram os déspotas da União Soviética, evitando que se enraizasse o comunismo ruinoso e desumano que o Kremlin queria impor ao resto do mundo.
Antes de ir para a reunião em que os dignitários iriam assinar a Carta Democrática, o ex-general Powell, que na época talvez fosse o político mais admirado dos EUA e, para muitos, o inevitável próximo presidente, fez uma visita formal ao presidente do Peru. Ele estava acompanhado por cinco altos funcionários do Departamento de Estado e Toledo os recebeu na companhia do presidente do Conselho de Ministros, Roberto Dañino, do ministro das Relações Exteriores e do secretário do combate às drogas. Nenhum dos participantes imaginava que, naquela promissora manhã de 11 de setembro, o mundo mudaria de maneiras que afetam a todos nós até hoje.
Enquanto provavam as delícias da culinária peruana, um dos assistentes de Powell entrou e sussurrou algo em seu ouvido enquanto entregava a ele um pedaço de papel. Relembrando o momento, Roberto Dañino, que entrevistei para este artigo, diz que Powell leu a nota, franziu a testa e informou brevemente ao grupo que um avião tinha perdido o rumo e batido em um prédio em Manhattan.
O grupo continuou conversando até que, minutos depois, o assistente entrou novamente e deu outro papel a Powell, que o leu e, sem perder a calma, disse aos comensais que um segundo avião havia colidido com um prédio, e tudo indicava que havia um ataque terrorista em andamento. “Quem está por trás disso?” pergunta Dañino. “A Al-Qaeda”, respondeu rapidamente Powell, para se corrigir em seguida: “Bem, a verdade é que não sei. Além disso, minha experiência militar me ensinou a reagir com calma a grandes eventos. Espero que a poeira baixe e as coisas possam ser vistas com mais clareza.” Eles perguntaram se ele voltaria para Washington imediatamente, deixando um de seus funcionários encarregado de assinar o documento. “De jeito nenhum”, respondeu Powell. “Eu fico e assino. A democracia é a melhor arma contra o terrorismo. A única coisa que peço é que avancemos o processo de assinatura para que eu possa viajar o mais rápido possível.”
Isso aconteceu e, com a assinatura dos representantes dos governos do continente, exceto Cuba, foi aprovada a Carta Democrática que os obriga a promover e proteger a democracia em todo o hemisfério.
Vinte anos depois, as coisas mudaram. Uma recente pesquisa IPSOS envolvendo 19 mil pessoas em 25 países (incluindo Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, México e Peru) descobriu que a percepção que esses latino-americanos têm de sua democracia é a pior do mundo. Ainda mais preocupante é o fato de 44% dos latino-americanos pesquisados desejarem ter “líderes fortes dispostos a quebrar as regras”. A percepção de que a sociedade está fragmentada é maior entre os latino-americanos (64%) do que no resto do mundo (56%).
A polarização nos países latino-americanos se reflete inevitavelmente na polarização dos governos da região. Não é surpreendente, portanto, que nestes vinte anos a Carta Democrática não tenha sido aplicada em casos tão flagrantes de violação dos seus princípios como os de Chávez e Maduro, na Venezuela, ou da Nicarágua de Daniel Ortega.
Colin Powell morreu em 18 de outubro, aos 84 anos. Ao recontar a vida dele, a mídia de massas mencionou seus sucessos e erros, mas seu papel na adoção da Carta Democrática é pouco mais do que invisível.
Sei que, mesmo na aposentadoria, o general e diplomata estava muito preocupado com o tempo de precariedade democrática que o mundo atravessa. Me pergunto se ocorreu a Powell que, caso as coisas continuarem como estão, talvez o documento que ele assinou em Lima há vinte anos tenha de ser aplicado aos Estados Unidos. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL