A luta contra a morte
Andrea G
El Estadão / Moisés Naím e tradução de Guilhermo Russo
Rolls Royce é um dos carros mais caros do mundo. Disso sabemos. Não tão conhecido é que, no ano passado, foram vendidas mais unidades do que nunca. Concretamente, 49% mais Rolls Royces do que no ano anterior, quebrando, desta maneira, os recordes de vendas da companhia fundada em 1906. Mas esta empresa automotiva não foi a única que teve um ano extraordinário. A Ferrari também informa que em 2021 teve lucros sem precedentes.
O que aconteceu? A pandemia fez com que muitos ricos percebessem que a vida é curta. Foi essa, ao menos, a explicação que Torsten Müller-Otvös, o diretor da Rolls Royce, deu ao jornal britânico Financial Times: “Muita gente viu pessoas conhecidas morrerem por causa da covid, e isso as levou a considerar que a vida é curta e é melhor desfrutar agora, não deixar isso para depois.”
Obviamente, os “muito ricos” que tomaram consciência de sua mortalidade não são tantos. O ano muito lucrativo que a Rolls Royce teve foi resultado da venda de apenas 5.586 veículos ao redor do mundo. Mas enquanto uns poucos ricos se deram conta de que a vida é breve, outros decidiram destinar imensas fortunas a pesquisas de tratamentos para que todos nós possamos levar vidas saudáveis por mais tempo.
BIOTECNOLOGIA
Em 23 de janeiro, a Altos Labs anunciou o início de suas atividades. Como muitas novas empresas de biotecnologia, ela afirma que sua missão é nada menos que transformar a medicina. Mas, diferentemente da maioria, neste caso a ambição é crível.
Rick Klausner, que dirigiu o Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos, é fundador e diretor científico da Altos Labs. Klausner conseguiu recrutar para a nova empresa vários prêmios Nobel e formou um grupo com os mais prestigiados cientistas do mundo no campo da biotecnologia. Ele também arrecadou US$ 3 bilhões com importantes investidores. E tudo isso é apenas o começo de um ambicioso projeto de pesquisa científica e empreendimento.
A empresa se dedicará à busca de tratamentos para rejuvenescer células que foram afetadas por anomalias genéticas, lesões ou pelos efeitos do envelhecimento. O objetivo é restabelecer a saúde das células e torná-las mais resilientes. Chegar a isso não apenas melhoraria a qualidade de vida dos que sofrem de doenças crônicas, mas também poderia lhes garantir mais alguns anos de vida.
CASA BRANCA
Joe Biden também acaba de declarar guerra contra a morte. No caso, o foco concreto da guerra é o setor público contra o câncer. Há pouco, o presidente anunciou a criação de um “gabinete do câncer” na Casa Branca, cujo propósito é acelerar as pesquisas e coordenar diferentes esforços que o governo americano coloca em prática nesse campo.
Quando foi vice de Obama, Biden também ficou encarregado do lançamento de um programa contra o câncer, que conquistou certos avanços mas não alcançou o êxito prometido. Agora como presidente, Biden – que perdeu um dos filhos para um câncer no cérebro – lembrou que, enquanto a pandemia cobrou 900 mil vidas nos Estados Unidos até agora, durante esse mesmo período 1,2 milhão de pessoas morreram de câncer.
Segundo o Instituto Nacional do Câncer dos EUA, cerca de 40% dos americanos sofrerão durante sua vida de algum dos 200 tipos diferentes de câncer conhecidos. Por sua vez, a Sociedade Americana do Câncer estima que, este ano, haverá no país quase 2 milhões de novos pacientes de câncer, dos quais 600 mil perderão a vida. Biden pretende reduzir o número de mortes por câncer e enfatizou que o programa que está lançando tem como objetivo reduzir as fatalidades pela metade em 25 anos. Segundo o presidente, ao longo dos últimos cinco anos ocorreram importantíssimos avanços científicos que, combinados aos que estão a caminho, tornarão possível alcançar a meta que ele propõe.
A pandemia nos apresentou muitas surpresas. Uma delas é a maior consciência que passou a existir a respeito da própria mortalidade e as reações que isso suscita. Para alguns mais abastados, a resposta ao vírus e sua mortífera ameaça é desfrutar aqui e agora do que se tem. Obviamente, enfrentar a pandemia comprando um Rolls Royce é possível apenas para uns poucos privilegiados, mas não é preciso ser milionário para se recusar a postergar qualquer deleite. Milhões fizeram isso.
A pandemia estimulou em certas pessoas a vontade de ajudar o próximo. Algumas o fazem de maneira individual e modesta, e outras de maneira ambiciosa e em grande escala. Os cientistas que lançaram a Altos Labs são um bom exemplo do senso de urgência e da possibilidade de atuar em grande escala.
INTROSPECÇÃO
Mas talvez o mais curioso seja que a pandemia e suas nefastas sequelas também impulsionaram um surto de introspecção que levou muita gente a repensar – ou talvez pensar pela primeira vez – o propósito de sua vida, seus valores, esperanças e frustrações. É com essa nova carga vital que alguns estão se dedicando a vencer o envelhecimento celular, e outros a vencer o câncer.
Essas pessoas reagiram a este choque global com uma carga de idealismo que nos fazia muita falta. E que sem dúvida deixará um legado muito superior que um Rolls Royce. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO