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Global Columns

Estacionamento, tosse e pandemia

Andrea G

El Estadão / Moisés Naím e tradução de Augusto Calil

O que os carros parados em um estacionamento têm a ver com pesquisas na internet envolvendo as palavras “diarreia” e “tosse”? E, por sua vez, o que esses dados têm a ver com a pandemia que está nos atormentando? Muito.

Pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard decidiram usar imagens de satélite para ver como flutuava o número de carros nos estacionamentos dos seis principais hospitais de Wuhan. Esta é a cidade de 11 milhões de habitantes situada no centro da China, a partir de onde o vírus causador da doença que conhecemos hoje como covid-19 se espalhou para o resto do mundo.

Os cientistas adquiriram de uma empresa chinesa que comercializa imagens feitas a partir do espaço as fotos dos estacionamentos entre janeiro de 2018 e abril de 2020. Ao analisá-las, os pesquisadores descobriram que, entre agosto e dezembro de 2019, o número de carros estacionados em hospitais aumentou inexplicavelmente. Naqueles meses, o número estava acima da média.

Mas isso não é tudo. Na China, o Google está bloqueado e o mecanismo de pesquisa equivalente se chama Baidu. Nesses dois meses, as pesquisas no Baidu de Wuhan envolvendo os termos “tosse”, “diarreia” e “problemas respiratórios” dispararam.

Os investigadores chegaram a uma conclusão explosiva: “Em Wuhan, o aumento no tráfego hospitalar e nas pesquisas na internet por informações a respeito de sintomas aumentou drasticamente em 2019 e precedeu o início documentado da pandemia, em dezembro daquele ano”.

A conclusão é explosiva porque, de acordo com esses dados, o surto começou meses antes do governo chinês informar ao mundo o que estava acontecendo, o que reduziu o tempo que outros governos tiveram para se preparar. Isso é negado por Pequim, que, além disso, rejeita a validade do estudo. Os autores reconhecem as limitações de sua metodologia e os dados utilizados. No entanto, apesar dessas limitações, é óbvio que os resultados da pesquisa fornecem uma perspectiva adicional útil. E não apenas a respeito da pandemia.

Vemos algo semelhante ao efeito Chernobyl: burocracias tendem a esconder seus erros, e ainda mais as burocracias de regimes autoritários. Essa foi, por exemplo, a reação inicial da ditadura russa quando, em 1986, a usina nuclear de Chernobyl explodiu.  

A explosão dispersou material radioativo na União Soviética, em partes da Europa e chegou ao Canadá. Tudo indica que o efeito Chernobyl, que consiste em ocultar o problema, moldou a resposta do governo chinês quando já tinha se tornado óbvio.

Tudo é conhecido: por mais que tentassem, os líderes da União Soviética não puderam impedir o mundo de saber da explosão de Chernobyl e seus efeitos. O mesmo aconteceu com o atraso deliberado, primeiro pelo governo local de Wuhan.

Tudo é medido: quem teria pensado que o número de carros em um estacionamento revelaria uma pandemia incipiente? Ou que o volume de pesquisas por determinados termos na internet serviria para prever epidemias?

Nestes tempos, nossa simples existência enquanto indivíduos gera uma montanha de dados que, gostemos ou não, são capturados e processados pelas novas tecnologias. Telefones celulares, câmeras, computadores, sensores e plataformas como Facebook, Instagram, Twitter ou Flickr e os mecanismos de pesquisa estão constantemente coletando informações a respeito de nossos comportamentos individuais e transformando esses dados em informações úteis - para melhor e para pior.

Tudo é politizado: o estudo de Harvard é publicado em um momento em que os atritos entre Estados Unidos e China continuam a aumentar em número e intensidade. Após reveses iniciais no reconhecimento e comunicação da extensão da pandemia, Pequim lançou uma campanha internacional abrangente. Ela enfatiza o sucesso de sua intervenção para conter o vírus, em contraste com o caos que caracteriza a resposta da Casa Branca. 

De sua parte, o governo dos EUA também lançou uma ampla campanha de difamação contra a China, enfatizando a opacidade de suas ações. As denúncias contra a China serão, sem dúvida, um tema central da campanha eleitoral de Donald Trump. E a China responderá a elas.

Em um mundo sem segredos, os conflitos podem ser gerenciados, mas não suprimidos./ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL