Tragédias Americanas
Andrea G
El Estadão / Moisés Naím e tradução de Terezinha Martino
A eleição de Donald Trump foi unicamente uma manifestação das forças que mantêm a sociedade dos Estados Unidos dividida, estremecida, confusa. Os grandes problemas desse país são conhecidos: desigualdade, racismo, terrorismo, dificuldade para se chegar a acordos políticos e uma reduzida influência internacional.
Salvo o racismo e a desigualdade, esses grandes problemas não afetam a vida cotidiana dos americanos. Há outros, contudo, que os atingem de maneira cruel, perceptível e frequente.
Um deles é a regulamentação irresponsavelmente frouxa das armas de fogo. Os dados são aterradores. Os Estados Unidos comportam 4,4% da população do planeta e 42% das armas. Também registram o maior número de assassinatos em massa, especialmente nas escolas. Desde 2002, mais de 400 estudantes, professores e funcionários de escolas foram assassinados com armas de fogo, 5 por mês. Só neste ano, foram 9 ataques. Nos Estados Unidos, porém, o lugar mais perigoso para crianças e jovens não é a escola, mas sua casa. Muitos mais morrem vítimas de armas em casa do que na escola. Os assassinos costumam ser parentes ou conhecidos.
O presidente Trump e a Associação Nacional do Rifle (NRA, na sigla em inglês) afirmam que o problema não tem a ver com armas, mas com saúde mental. Nenhum outro país, porém, sofre regularmente esse tipo de ataques como os Estados Unidos – e, estatisticamente, as doenças mentais não são mais frequentes lá do que em outros lugares. Todos os estudos independentes concluem que a facilidade que existe para se comprar uma arma, incluindo metralhadoras, explica esses massacres.
O fato é que 75% dos americanos desejam mais controles sobre a venda e posse de armas e mais restrições ao acesso a armas de guerra. Mas as preferências dessa grande maioria sistematicamente são esmagadas pela NRA que, disfarçada de ONG, é o lobby dos fabricantes de armas, com cinco milhões de membros que se mobilizam de modo disciplinado para votar contra os políticos que não apoiam cegamente suas posições radicais.
Além disso, a NRA tem muito dinheiro para influenciar as eleições. Doou US$ 30 milhões para a campanha de Donald Trump e outros US$ 3 milhões para a de Marco Rubio. São valores minúsculos comparados com os ganhos com a venda de armas auferidos pelos fabricantes, cujos interesses estão bem protegidos pela NRA. Ou seja, uma minoria impõe seus valores à maioria.
Outra realidade nociva para milhões de americanos é o uso abusivo de opiáceos, obtidos tanto legalmente, com receita médica, como por vias ilícitas. O consumo ilegal de heroína e opioides como o fentanil disparou. Em 2015, dois milhões de americanos tiveram problemas de saúde por causa do uso excessivo dessas drogas. Em nenhum outro país se receita e se consome tantos opiáceos como nos Estados Unidos.
Até o fim dos anos 90, as empresas farmacêuticas lançaram uma vasta campanha para convencer médicos e hospitais de que esses remédios eram apropriados para aliviar a dor e não causavam dependência. O resultado foi um enorme aumento da prescrição dessas drogas, das overdoses e da dependência química. E também dos lucros das empresas. As tentativas do governo para impor limites a isso se depararam com o veto do poderoso lobby farmacêutico. E, de novo, os benefícios econômicos de alguns poucos, com dinheiro e influência sobre os políticos, tiveram mais força do que o bem-estar da sociedade.
Mas, ao mesmo tempo que nos Estados Unidos são abundantes os opiáceos que matam, também há uma severa escassez de medicamentos que salvam. E isso se deve não ao fato de os medicamentos não estarem disponíveis, mas de estarem fora do alcance de milhões de americanos que não podem pagar por eles. Os preços de remédios nos Estados Unidos são os mais altos do mundo. O gasto anual médio com remédios por pessoa é de US$ 858, ao passo que, em outros países industrializados, a média é de US$ 400. E 20% dos americanos afirmam que os remédios são tão caros que são obrigados a racionar a dose receitada pelo médico ou não repetir o remédio quando ele acaba.
A conduta de algumas companhias farmacêuticas é revoltante. Nos últimos anos, aumentaram, sem explicação, o valor da insulina para diabéticos em 325%. O preço do Lomustine, remédio para tratamento de câncer, teve um aumento de 1.400% desde 1992, sem que os custos de produção tenham aumentado. O preço do EpiPen – medicamento antialérgico – subiu de US$ 57, em 2007, para US$ 500. O valor de 30 cápsulas de cicloserina, usada para tratamento da tuberculose, passou de US$ 500 para US$ 10.800. Apenas em 2015, o preço da cesta dos medicamentos mais usados aumentou 130 vezes mais do que a inflação em geral.
Segundo uma sondagem, 82% dos americanos querem leis que baixem os preços dos remédios. Mas o lobby das empresas farmacêuticas disputa com o da NRA pelo primeiro lugar entre os grupos empresariais com mais dinheiro para bloquear iniciativas governamentais que defendam o consumidor.
Outro fenômeno que está matando os americanos é a mudança climática. O ano de 2017 foi o mais repleto de furacões, incêndios florestais, tornados, inundações e secas na história do país. A frequência de fenômenos meteorológicos extremos aumentou. A Califórnia sofreu mais incêndios do que nunca, várias cidades registraram temperaturas recorde e secas prolongadas. O furacão Harvey bateu recordes de chuva e devastou Porto Rico, onde provocou mil mortes. Em fevereiro, no Polo Norte fez mais calor do que em algumas regiões da Europa.
Como explicar a timidez com que os Estados Unidos enfrentam esse problema que, se continuar, causará enormes danos à população, especialmente a mais pobre?
Reduzir as emissões que contribuem para o aquecimento global pode ser muito caro para alguns setores empresariais que prefeririam evitar esses gastos e adiá-los ao máximo para salvaguardar seus lucros. Assim, contribuem com muita eficácia para fomentar o ceticismo, atenuando a sensação de urgência e permitindo aos políticos cúmplices adiar as iniciativas necessárias.
Esta tática não é nova. Durante décadas, as companhias de tabaco financiaram campanhas para fazer com que o público acreditasse que havia um “debate científico” para saber se o fumo provocava câncer. Participaram desse debate “cientistas céticos”, que argumentavam não haver provas suficientes de um vínculo causal entre tabaco e câncer.
Anos depois – e após centenas de milhares de mortes – soube-se que aqueles cientistas foram patrocinados pelos vendedores de cigarros, cujo único objetivo era confundir a opinião pública e impedir que o governo agisse para proteger a saúde da população. Algo parecido vem ocorrendo com o “debate científico” sobre a mudança climática.
Segundo a agência Reuters, 25 das principais companhias americanas (Google PepsiC, DuPont, Verizon e outras) financiam mais de 130 membros do Congresso, quase todos do Partido Republicano, que se declaram céticos sobre a mudança climática e bloqueiam sistematicamente as iniciativas para reduzir as emissões. A ExxonMobil admitiu ter financiado durante décadas organizações cuja missão era disseminar dúvidas sobre o consenso científico a propósito da mudança climática.
O que essas quatro tragédias têm em comum? O dinheiro. Ou melhor, a propensão de alguns empresários, no afã de aumentar e proteger seus ganhos, a abusar dos seus clientes e da sociedade. E podem agir assim porque conseguiram “se apropriar” das instituições do Estado encarregadas de regulamentá-los e limitar suas práticas abusivas. E também porque o governo e os políticos não impedem isso. Assim, a uma falha do mercado (condutas empresariais que prejudicam a sociedade) se soma uma falha do governo (sua inoperância). Esta apropriação dos órgãos fiscalizadores perdura quando a democracia malogra (nas eleições não são penalizados os políticos que apoiam mais os interesses particulares do que os dos eleitores).
A solução é tão óbvia quanto difícil de ser implementada: reparar a democracia onde está deteriorada. Não há prioridade mais importante./ TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO