Marcha da insensatez
Andrea G
El Estadão / Moisés Naím e tradução de Terezinha Martino
Passei mais de seis meses sem escrever minha coluna para concluir um livro e uma série de TV em que vinha trabalhando havia alguns anos. Concluída a tarefa, estou de volta.
Durante estes meses, foram muitas as vezes em que me vi tentado a reagir por escrito diante dos muitos acontecimentos insólitos que nos surpreenderam. Desde a desconcertante chegada de Donald Trump à presidência dos EUA aos sangrentos massacres na Síria, e dos resultados de importantes referendos em Reino Unido, Colômbia e Itália à intromissão russa nas eleições americanas.
E, claro, a grande ansiedade populista. Refiro-me ao crescente temor de que em cada um dos países cheguem ao poder indivíduos e grupos políticos que tentam, ou conseguem, substituir a deficiente ordem política, social e econômica do seu país por um programa que acaba sendo ainda pior.
Talvez o mais interessante – e mais perigoso – é a frequência com que fatos inéditos e situações excepcionais se tornaram comuns. A normalização do excepcional é uma característica importante deste nosso tempo. Tornou-se normal, por exemplo, que fatos absolutamente irrelevantes recebam mais atenção do que outros de grande importância para o mundo. Em 13 de dezembro, por exemplo, o jornal mais importante da emissora americana ABC divulgou a notícia de que o presidente eleito, Trump, se reuniu com o cantor de rap Kanye West. O tema do encontro? “Assuntos multiculturais”, segundo West. “A vida”, afirmou Trump.
No mesmo dia, tomou posse o novo secretário-geral da ONU, o português Antonio Guterres, fato que não despertou maior interesse da mídia. A ONU não tem boa reputação, mas sem dúvida o que ali ocorre tem mais importância para todos nós do que a visita de West a Trump.
Essa preferência da mídia pelo popular, pelo sensacional e o que é divertido, em detrimento do que é importante e tedioso não é nova. Mas mais recentemente a tendência chegou à sua expressão máxima. A melhor prova disso é a popularização das “notícias falsas”. São “notícias” totalmente inventadas ou tergiversações de fatos reais que seus criadores fazem circular nas redes sociais.
Para muitos, o Facebook e o Twitter são hoje a principal, quando não a única, fonte de informação. O site Buzzfeed concluiu que nos últimos três meses da campanha eleitoral nos EUA, as 20 notícias falsas mais populares no Facebook foram mais vistas, recomendadas e reproduzidas do que as 20 notícias verídicas mais importantes publicadas pela mídia tradicional.
As manchetes de algumas das notícias falsas que mais circularam foram: “O Papa Francisco apoia Donald Trump”, “Hillary vendeu armas para o Estado Islâmico”, “Encontrado morto um agente do FBI suspeito de ter divulgado informações críticas contra Hillary Clinton”. Um dos aspectos mais graves de tudo isso é a banalização da mentira. Antes como candidato e agora como presidente eleito, Trump ficou conhecido por inventar fatos, adulterar dados ou mentir diretamente.
Todos os políticos costumam exagerar, distorcer e, em alguns casos mais extremos, mentir com desfaçatez. Mas aceitar a falácia como um elemento a mais do estilo pessoal de um líder político não era normal. Hoje, é.
Entretanto, de todas as situações excepcionais que vimos tratando como “normais” não há nenhuma mais ameaçadora do que o aquecimento global. O ano de 2016 foi o mais quente desde 1880. O recorde anterior foi registrado em 2015. Os dez anos mais quentes da história foram após 1998. Tornou-se normal que, a cada ano, a temperatura média da superfície do planeta seja mais alta.
Essa normalização da mudança climática chegou ao ponto em que o desaparecimento de enormes superfícies de gelo polar não causa muita comoção. Na mesma época em que Trump recebeu Kanye West, cientistas anunciavam que a calota de gelo polar havia se reduzido em tamanho equivalente à superfície da Índia.
Uma das pessoas que não se mostram alarmadas por essas transformações é Trump. O presidente eleito, negando provas científicas, afirmou que a mudança climática é uma fraude do governo chinês para prejudicar seu país. Antes, desprezar a ciência não era aceitável nem normal. Hoje, é. A normalização do excepcional ameaça a todos nós. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO