Quando fatos não importam
El Estadão / Moisés Naím e tradução de Terezhina Martino
Essa desigualdade econômica é um dos fatos que contribuem para estimular outra tendência atual: a desconfiança. Todas as análises de índices em diferentes países mostram que a confiança está em queda livre. Cidadãos confiam muito pouco no governo, nas empresas privadas, nas ONGs ou nos meios de comunicação. A cada ano, os indicadores de confiança caem mais. Instituições que antes estavam acima de qualquer suspeita hoje não conseguem se esquivar da onda que castiga as demais. Nos últimos anos, por exemplo, crises econômicas e políticas debilitaram a confiança da opinião pública nos “especialistas”, e os escândalos sexuais e financeiros diminuíram a crença das pessoas na Igreja Católica.
Mas há exceções. Às vezes, uma população normalmente desconfiada e descrente decide repentinamente depositar sua confiança em determinados líderes ou movimentos. A confiança parece ser tudo ou nada. É algo parecido com o que se verificou na economia: o ganhador leva tudo. Subitamente, surgem indivíduos que despertam uma confiança enorme e inabalável numa população habitualmente incrédula. Temos observado como a confiança em certos líderes se mantém apesar da comprovada propensão a deformar a realidade, adulterar estatísticas, fazer promessas claramente impossíveis, acusações infundadas ou simplesmente mentir.
É surpreendente ver uma população normalmente temerosa acreditar em alguém que mente e manter a confiança mesmo depois de as suas mentiras ficarem evidentes. Donald Trump é um bom exemplo. A mídia reporta diariamente afirmações falsas que ele faz, mas isso não afeta o entusiasmo de seus seguidores. Muitos acham que mentirosos são os jornalistas que dizem revelar a falsidade das afirmações do candidato. Para outros, os fatos não importam. Trump lhes oferece esperança, proteção e reivindicações que formam um pacote de promessas irresistível.
Algo parecido acabou de ocorrer no caso do Brexit. Um dos espetáculos mais insólitos observados um dia depois do referendo em que os britânicos aprovaram a saída do seu país da União Europeia foi ver e ouvir os líderes do Brexit negarem as promessas e dados nos quais basearam sua campanha. Não, o montante de dinheiro que o Reino Unido envia à Europa não é o que foi afirmado. Não, esse dinheiro não será economizado e nem investido no sistema de saúde. Não, a saída da UE não resultará em menos imigrantes.
Todas essas negativas foram balbuciadas pelos líderes do Brexit um dia depois da sua vitória. Os mesmos líderes que horas antes e durante meses insistiram no contrário. De novo, nem os fatos e nem os dados importam. Dados e fatos são para os especialistas “e o cidadão desse país está cansado dos especialistas”. Foi o que afirmou Michael Gove, um dos líderes da campanha em favor da saída – e agora candidato a primeiro-ministro – quando, antes do referendo, um jornalista lhe perguntou sobre as devastadoras conclusões de um grupo de renomados especialistas.
São apenas dois exemplos de muitos outros que vimos na Espanha, Itália e em outros países da Europa, como também na América Latina. Está na moda falar de um mundo “pós-factual” onde, apesar da revolução da informação e outros avanços, os fatos e dados não importam. Emoções, paixões e instituições são as forças que guiam decisões políticas que afetam a milhões de pessoas. Isso não é novo. Política sem emoções não é política. Mas decisões de governo em que os dados não importam não são decisões de governo, são bruxaria.
Como o cidadão britânico descobriu rapidamente, deixar-se levar pelas emoções e as instituições e ignorar a realidade, inevitavelmente, resultam em imenso sofrimento humano. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO