Moisés Naím

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O lugar mais perigoso

El Estadão / Moisés Naím e tradução de Roberto Muniz

Os órgãos de inteligência costumam preparar listas dos lugares mais perigosos do mundo. A Caxemira, por exemplo, sempre aparece nessas listas. É um território fronteiriço disputado por  Índia, Paquistão  e China e já foi motivo de conflitos armados. Índia e Paquistão agora têm armas nucleares, o que aumenta o perigo de um confronto militar que começa ali e pode crescer até se transformar em uma grave ameaça à paz mundial.

A Síria, outro dos lugares perigosos, também ilustra como conflitos locais terminam afetando toda um região e mais além. Nestes dias, vemos como a Turquia aproveita as novas circunstâncias internacionais para conquistar novos territórios, alterar fronteiras e subjugar os curdos.

A Península Arábica, o Golfo Pérsico, os países do norte do Cáucaso e a Península Coreana são alguns dos lugares onde conflitos locais ou binacionais têm o potencial de se internacionalizarem. Mas essa lista de lugares mais perigosos do mundo precisa ser atualizada. Hoje, sem dúvida alguma, o epicentro do qual se irradiam graves ameaças à estabilidade mundial é... Washington. Mais precisamente, a Casa Branca.

O presidente que se apresentou como mestre na arte de negociar e como eterno ganhador nada tem feito além de perder e deixar que os ditadores mais infames de nosso tempo o manipulem. Seu novo amigo, o sangrento ditador da Coreia do Norte, o levou a acreditar que estava disposto a desmantelar seu arsenal nuclear se Washington pusesse fim às sanções contra Pyongyang. Enquanto isso, o tirano coreano continuava testando suas bombas nucleares e os mísseis que as transportam.

Outro amigo de Trump, Recep Tayyip Erdogan, o persuadiu a retirar as forças americanas da Síria e permitir que as forças turcas invadissem o norte desse país e “neutralizassem” as milícias curdas. Não importou a Trump o papel decisivo que os curdos tiveram na luta feroz contra o Estado Islâmico.

A concessão que Trump fez ao amigo turco está saindo caro para ele dentro e fora de seu país. De fato, permitir a aventura bélica de Erdogan levou ao que até agora parecia impossível: os republicanos no Congresso votarem esmagadoramente com os deputados democratas na crítica ao presidente americano. 

Também é evidente que o presidente Trump se sente mais à vontade com seu outro melhor amigo, Vladimir Putin, do que com o Congresso de seu país. A última prova disso foi sua decisão de vetar uma resolução proposta pela União Europeia condenando a Turquia por sua invasão da Síria. O outro país que vetou a resolução? Rússia.

Trump tampouco teve muito êxito em sua guerra comercial contra a China, em sua decisão de retirar os Estados Unidos do acordo nuclear com o Irã, em administrar a crise entre a Arábia Saudita e seus vizinhos, em negociar com o Taleban, nas relações com os aliados europeus e, obviamente, na tentativa de pôr a política externa dos EUA a serviço de seus interesses pessoais, tanto eleitorais quanto comerciais.

De modo geral, a perda de poder e influência dos EUA no mundo gerada pela atuação de Trump passará para a história como um dos mais devastadores gols contra geopolíticos. Entretanto, por mais grave que seja a instabilidade provocada por Trump no mundo, o maior perigo que hoje emana da Casa Branca não é internacional, é doméstico. Cada vez com mais audácia, o presidente põe à prova a Constituição e as normas das quais a democracia americana depende. Trump desafiou o Congresso, negando-lhe o direito constitucional de obter documentos ou de ordenar o comparecimento a audiências de funcionários públicos ou cidadãos que tenham informações relevantes. Os grotescos ataques do presidente a políticos de oposição, a pessoas que trabalharam com ele e acabaram por repudiá-lo, a meios de comunicação e jornalistas, são constantes e crescentes. Não são simples excessos verbais de um político histriônico - são perigosas condutas antidemocráticas.

As ameaças que as democracias enfrentam foram assinaladas por um jovem político americano em 1838. Abraham Lincoln, então com 28 anos, explicou que, para se contrapor a essas ameaças, a democracia de seu país deveria cultivar “uma religião política” que enfatizasse a reverência às leis e o domínio da razão, “a razão fria e desapaixonada”. É óbvio que Trump não tem grande reverência pela lei e que os EUA vão depender de suas instituições e de seus líderes para preservar sua democracia. Há muito em jogo.

Uma democracia americana forte não beneficiaria apenas aos EUA, mas também ao restante do mundo. É por isso que as tentativas de minar a democracia que hoje vemos em Washington fazem dessa cidade o lugar mais perigoso do mundo. / Tradução de Roberto Muniz