Como desmontar uma superpotência
El Estadão / Moisés Naím e tradução de Augusto Calil
Uma das surpresas que os historiadores vão estudar durante muitos anos é a decisão dos Estados Unidos de renunciar à liderança mundial. Mais ainda, terão de explicar por que o país o fez de maneira unilateral, sem que ninguém tenha arrebatado o imenso poder que acumulou ao longo do século passado.
Essa abdicação não foi resultado de uma decisão específica, e sim de um complexo e amplo processo. E, se a chegada de Donald Trump à Casa Branca acelerou as coisas, a cessão do poder já vinha ocorrendo havia algum tempo.
A fragmentação política interna dos Estados Unidos e sua dificuldade em tomar decisões fundamentais têm muito a ver com o declínio de sua influência. Em 2015, Larry Summers, ex-secretário do Tesouro americano, advertiu que a rigidez ideológica e a consequente incapacidade de forjar um consenso enfraqueceu o papel de seu país no mundo. De acordo com Summers, “enquanto um dos nossos dois partidos políticos continuar a se opor a acordos comerciais com outros países e o outro partido resistir a financiar organizações internacionais, os Estados Unidos não estarão em posição para moldar o sistema econômico global”.
Quando Summers disse isso, o exemplo que ilustrava o dano autoinfligido dos Estados Unidos foi a relutância do Congresso em aprovar reformas para fortalecer instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI). Organizações como essa, ou como o Banco Mundial, são uma parte importante de uma ordem mundial que beneficia os EUA. Portanto, sua força e relevância devem ser uma prioridade para Washington. Surpreendentemente, as coisas não são assim.
No caso das reformas do FMI, os governos de 188 de seus 189 países-membros as aprovaram. Os EUA não o fizeram e, sem a sua anuência, as reformas não poderiam ser implementadas. Após cinco anos esperando que o Congresso americano agisse, o governo chinês decidiu criar uma nova organização financeira internacional na qual Washington não teria influência. Assim, há agora o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII), do qual 57 países são membros e ao qual estão prestes a aderir outros 25 países, incluindo Canadá e Irlanda. Desde o início os EUA foram convidados a fazer parte do BAII, mas isso ainda não ocorreu.
Outro exemplo recente de transferência unilateral do poder foi a decisão tomada por Trump de retirar os EUA do acordo da Parceria Transpacífico (TPP, na sigla em inglês). O TPP não inclui a China e o propósito de Barack Obama ao propô-lo era criar um órgão permanente para promover a integração dos EUA com seus aliados na Ásia. Naturalmente, um acordo desse tipo também pretendia servir como contrapeso à crescente influência chinesa na região.
Uma das primeiras decisões tomadas por Trump como presidente foi retirar o país do TPP. A China reagiu imediatamente e agiu para aproveitar o presente inesperado. Pequim iniciou contatos do mais alto nível com os outros 11 países-membros do TPP para propor um acordo comercial atraente. Os Estados Unidos não foram convidados.
Mas, para Xi Jinping, presidente chinês, esse acordo de comércio não era suficiente, e ele decidiu expandir uma iniciativa que foi proposta em 2013: a nova Rota da Seda.
Invocando a rede lendária de estradas na antiguidade que conectava a China ao restante da Ásia, alcançando o Mediterrâneo, o presidente Xi convocou 64 países a participar de um grande projeto de construção de estradas, ferrovias, portos e aeroportos, que uniria a China à Ásia, ao Oriente Médio, África, Europa e outros países, até mesmo os latino-americanos, como Argentina e Chile. Somados à China, esses 64 países abrigam 60% da humanidade e, juntos, representam um terço da economia mundial. Há pouco, 44 chefes de Estado participaram de uma reunião em Pequim, assinando uma declaração em que dizem: “Somos contra todas as formas de protecionismo… e defendemos um comércio internacional universal e aberto, com base em regras, que não seja discriminatório e seja equitativo”. Isso, obviamente, contrasta com as posições mais protecionistas do governo atual dos EUA.
O comércio internacional não é a única área em que Washington está perdendo a liderança e a influência internacionais. A luta contra o aquecimento global e a proliferação nuclear, a ajuda ao desenvolvimento e o controle de pandemias globais, a intervenção para conter a crise financeira, a regulamentação da internet, a gestão da atividade humana nos oceanos, ar, espaço, no Ártico e na Antártica são apenas algumas das áreas em que a importância dos EUA diminuiu.
Quem vai preencher esse vazio de poder? A resposta irá definir a nova ordem mundial. Na próxima coluna vou oferecer algumas respostas. Já adianto uma: não será a China. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL