Moisés Naím

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O incêndio das ruas

El Estadão / Moisés Naím e tradução de Roberto Muniz

É a desigualdade econômica. São os salários baixos. É a pouca (ou nenhuma) mobilidade social e a falta de um futuro melhor para os jovens. É a globalização e a perda de postos de trabalho causada pelas ondas de imigrantes, de produtos chineses e de robôs.

São os políticos que perderam a sintonia com as pessoas e só representam a si mesmos ou as elites. São as redes sociais e os agentes furtivos que as utilizam para semear a discórdia, aprofundar os ressentimentos e a desconfiança que dividem a população. 

É o enfraquecimento da família como núcleo da sociedade. É a perda da dignidade, do senso de comunidade e das tradições e regras que contribuem para criar identidade e sentimentos de ajuda e solidariedade. 

É a discriminação racial ou as tensões entre grupos étnicos ou religiosos. Ou a necessidade de desalojar do poder um regime político inaceitável ou de resistir a leis injustas. 

Essas são algumas das explicações mais comuns para os protestos de rua que estão sacudindo o mundo, uma salada na qual cabe tudo - de mitos comprovadamente falsos a realidades facilmente verificáveis.

Cada uma dessas explicações é tema de ensaios, artigos e livros. Todas procuram as causas mais profundas das manifestações de rua, que têm gatilhos muito concretos. O aumento do preço da cebola na Índia, do trigo no Egito, da gasolina no Equador e do diesel na França; o imposto pelo uso do WhatsApp no Líbano; a adoção de uma lei de extradição em Hong Kong; as armadilhas eleitorais dos governos da Bolívia e da Rússia; a condenação dos líderes da Catalunha; o aumento da passagem do metrô em Santiago são apenas alguns exemplos. E às vezes derrubam governos ou os obrigam a abandonar seus planos.

Muitas das razões mais profundas dos protestos também são usadas para explicar surpresas políticas como o Brexit, Donald Trump ou a ascensão de regimes populistas. Muitos desses descontentamentos vêm de longe e também existem em países nos quais não têm ocorrido protestos. Assim, as explicações comumente usadas não servem para prognosticar quando e onde eclodirão manifestações que serão amplificadas pelas queixas crônicas.

Um fator comum aos protestos é pegarem de surpresa os governos. Nem Emmanuel Macron, nem Sebastián Piñera, nem Xi Jinping estavam preparados para se antecipar ou responder à escalada de manifestações.

O sucesso dos protestos seguramente também surpreendem os que participam deles. Os jovens chilenos, cujos desmandos obrigaram o governo a pôr tropas na rua e implantar toque de recolher, não esperavam que seus protestos obrigariam o presidente a pedir desculpas pela TV. E menos ainda que o governo adotasse com tanta rapidez um pacote de medidas econômicas visando a corrigir algumas das desigualdades. Vale o mesmo para os jovens de Hong Kong, que conseguiram que o governo desistisse de impor a lei de extradição.

A grande pergunta que se faz hoje é se estamos diante de uma grande conspiração ou de um grande contágio. A teoria da conspiração diz que, na América Latina, Cuba entra com as informações, o regime de Maduro com o dinheiro e a Rússia com a tecnologia digital que ajudam a semear o caos e promover os protestos. A teoria do contágio, em troca, enfatiza que o chamado “efeito manifestação” agora se dissemina mais rapidamente e mais globalmente. Quem protesta no Chile viu seus pares nas ruas de Hong Kong, e estes seguramente viram o que sucede nas ruas de Paris ou de Barcelona. O contágio é fácil e mesmo inevitável.

Em qual das duas acreditar? Nas duas. Como vimos, os gatilhos dos protestos são locais, mas os protestos que ocorrem em outros pontos sem dúvida servem de inspiração e exemplo. Uma vez que as manifestações ganham força, é muito provável que agentes de regimes contrários ao governo que está sob ataque façam o que puderem para apoiar direta ou indiretamente os manifestantes.

Os protestos de rua são como os incêndios florestais que vêm aumentando de frequência e intensidade. Especialistas alertam que esses incêndios enormes vão continuar e teremos de aprender a viver em ecossistemas propensos a se incendiar. As sociedades e seus líderes também terão de aprender a viver com frequentes protestos de rua. Em alguns casos, serão só eventos irritantes e transitórios; em outros, o início de um processo de mudanças revolucionárias. / Tradução de Roberto Muniz